Concurso literário de poesias e crônicas

Luiza Nelma Fillus

Nessa edição de 18 de março de 2022, o jornal crônica classificada em 3º lugar no Concurso Literário de Poesias e Crônicas, em homenagem aos 150 anos da Imigração Polonesa no Paraná, comemorado em 2021. O referido concurso foi realizado pelas seguintes instituições: ALACS, BRAS-POL e NEES com o objetivo de escrever acerca do imaginário da cultura polonesa e/ou histórias da imigração polonesa no Brasil.

3º LUGAR: SOU UM BAÚ DE MADEIRA

Orlando Luiz Azevedo – Irati – Paraná

Fui feito por Matheus Dlugasz, exímio marceneiro, de madeira de lei extraída de uma floresta em Vila Vulka, Paróquia de Turgovich, Lublin – Polônia.

Matheus nasceu nessa localidade em 10 de setembro de 1886, numa Polônia que não existia como Estado, dominada pela Rússia. Foi ali que conheceu a sua companheira de toda vida: Apolônia Katezek. Casaram-se em 28 de junho de 1907 em uma pequena Vila chamada Bychowo, próxima à fronteira, mas pertencente à Alemanha.

Trabalhavam como empregados numa fazenda, tratando do gado, cultivando a fértil terra polonesa, plantando trigo, batata e outros cereais. Mas quase tudo era do patrão, pouco sobrava para eles. Ainda na Polônia, tiveram duas filhas, que lá faleceram – aos dois e oito meses de vida. As dificuldades de um país dominado e às vésperas de eclodir a primeira Guerra Mundial, fizeram, Matheus e Apolônia, tomarem a corajosa decisão de imigrar para o Brasil.

Em meu interior foram acomodados poucos pertences: roupas, ferramentas e alguns saquinhos de pano com sementes para a nova terra. Seguindo orientações do programa de imigração, embarcamos no trem que iria fazer a travessia: Polônia, Áustria, até o Porto de Trieste, ainda pertencente ao Reino Austro-Húngaro.

No porto, o majestoso Vapor Laura nos aguardava. Com 126,5 metros de comprimento, com ocupação para 130 passageiros de cabine e 1300 de 3ª classe, capacidade para 6.125 toneladas, impressionava os novos viajantes. As passagens 93 e 94 davam direito a um modesto espaço no porão do navio, junto com as 150 famílias que buscavam uma nova vida na América.

A partida no dia 12 de outubro de 1911 deverá sempre ser lembrada pelos descendentes deste jovem casal, hoje uma grande família aqui formada. Por toda a viagem, acomodado no porão do navio, estive ao lado do casal, ora servindo de banco, ora compartilhando as dificuldades de uma travessia que durou mais de um mês. Em dias de mar agitado, o desconforto dos passageiros não habituados aquele tipo de viagem parecia não ter fim. Esporadicamente era permitido aos imigrantes subirem ao convés do navio para tomar um ar fresco.

Chegamos ao Rio de Janeiro em 04 de novembro de 1911. Apenas um dia para conhecer um pouco da Cidade Maravilhosa e já estávamos noutro navio rumo ao Porto de Paranaguá. Viagem difícil pois o barco jogava muito nesse trecho próximo à costa.

Em Paranaguá fui direto para o vagão de carga, e Matheus e Apolônia, emocionados de pisar no solo paranaense, embarcaram no trem com destino ao Núcleo de Colonização em Cruz Machado (PR).

O trem nos deixou na Estação de Mallet. Daí para Cruz Machado seguimos em carroções puxados por parelhas de cavalos. Senti uma certa decepção nos poloneses ao chegarem ao reduto. As promessas de um paraíso tropical, cheio de frutas exóticas, a se fartar de colher, estava longe da realidade: toscas casas de madeira lascada, algumas cobertas de lona esperavam os novos moradores. Ao invés das planícies de terra fértil da Polônia, estavam diante de uma pequena clareira rodeada de araucárias seculares.

Mesmo assim houve a distribuição do oplatek – ecoando, pela primeira vez naquelas paragens, canções natalinas polonesas. Longe do frio da neve, mas com o calor da esperança em seus corações.

As dificuldades foram aparecendo, desde o início. Com poucas ferramentas e muito esforço conseguiram abrir uma pequena área para cultivo, dependendo ainda da minguada ajuda do Governo Brasileiro em víveres para aguardar a primeira colheita.

As precárias condições de vida propiciaram, no entanto, o surgimento de moléstias contagiosas que quase dizimaram os habitantes da Nova Colônia. A decisão de mudar para outra localidade foi tomada às pressas, quando já faltava madeira para fazer os caixões para enterrar os mortos.

Roxo-Rois, não muito distante da Colônia, apresentava-se como um lugar um pouco mais seguro para o casal. Acomodado num canto da nova casa, percebo o ruído da máquina de costura, onde Apolônia se dedica agora a confeccionar várias peças de roupas que logo iriam ser guardadas no meu interior, anunciando a novidade: eram roupas de bebê e a primeira filha a nascer em solo brasileiro. Victória nasceu em Roxo-Rois, hoje Rio Azul, aos 14 de janeiro de 1913.

A situação ainda continuava precária, pelo pouco que produziam as lavouras. Matheus, sempre à frente do seu tempo, buscou outras formas de trabalho. Caminhou mais de 60 quilômetros em busca de um emprego, encontrando na Lagoa (Irati), um novo rumo para sua vida. A indústria madeireira estava em fase de expansão e prometia um futuro mais promissor.

Luiza Fillus, Orlando L. Azevedo, Caterina B. Gaioski e Nelsi Pabis | Foto: Acervo Familiar

Mais uma vez me vi num vagão de carga, acomodando os poucos pertences da família, rumo à Lagoa, acompanhando Matheus, Apolônia e Victória nessa nova fase da vida.

Por suas qualidades como afiador de serras e operador de torno de cabo de vassoura, Matheus ganhou a confiança e admiração dos seus patrões, e nunca mais lhe faltou serviço na vida.

Vi nascer todos os filhos do casal. Depois da Victória, vieram Miguel, Rosa, João e Pedro. Moramos por cerca de nove anos na Lagoa, alguns anos em Rio d’Areia, retornando para Irati construir a casa nova.

Com as economias conseguidas com o árduo trabalho, Matheus comprou o terreno no Irati Velho e começou a adquirir madeiras para construir a casa. Os carpinteiros foram Ignácio Filipak e José Swiech. Em pouco tempo a casa nova estava pronta. Estilo casa de polaco, mesmo. Sótão, áreas nos lados, telhado com grande inclinação, cômodos grandes: cozinha, sala de costura, dois quartos, sala da frente, sótão com um quarto forrado e outro de caibro à vista, além de um porão com porta secreta que se tornou, mais tarde, o esconderijo preferido dos netos. Muito bem localizada, lugar alto, terreno amplo, à beira da estrada, com um veio de água pura e cristalina que nuca secou.

Aí a família cresceu e viveu por muitos anos. Victória e a Rosa se tornaram habilidosas costureiras, Miguel marceneiro e carpinteiro, João mecânico e Pedro motorista de caminhão. Todos se casaram, menos o Pedro, solitário, passou a maior parte do tempo viajando. Essa casa, por muitos anos, foi o ponto de encontro dos filhos, netos e bisnetos que se deliciaram com a comida da Vó e depois com a da Rosa, o churrasco caprichado do Vô, assado na valeta de brasas e até uma divertida partida de bocha, embaixo dos Cinamomos.

Acompanhei cada dia dessa família, instalado no quarto da Apolônia, onde, no meu interior, ela guardava suas roupas e os lindos lenços que usava à cabeça para ir à missa dos polacos na Igreja de São Miguel.

Quando todos dessa casa se foram, como uma cápsula do tempo, tomei um novo rumo: outra casa, mas a mesma família. Já se passaram seis gerações e tenho muitas histórias ainda para contar. Mas esta é tão especial que guardarei para sempre. Um dia alguém vai abrir as minhas comportas do tempo, mergulhar no passado, e ver tudo o que um baú de madeira pode contar.

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