Concurso literário de poesias e crônicas

LUIZA NELMA FILLUS

Nesta edição, está a crônica classificada em 2º lugar no Concurso Literário de Poesias e Crônicas, em homenagem aos 150 anos da Imigração Polonesa no Paraná, realizado em 2021, pelas seguintes instituições: ALACS, BRASPOL e NEES, com o objetivo de escrever acerca do imaginário da cultura polonesa e/ou histórias da imigração polonesa no Brasil

2º LUGAR: CRÔNICA
ISADORA MENDES – CAXIAS DO SUL – RS

Quando a chegada de imigrantes poloneses completa 150 anos, é natural que esse marco chame a atenção dos frutos dessas famílias. Eu, mesmo que sem ascendência polonesa, também me envolvi indiretamente nessa história.
Somos feitos de história. Elas constroem nossa identidade, dão pluralidade a nossa sociedade e são as raízes de tantas formas de linguagem e maneiras de ver e levar a vida. Se pudéssemos fazer um raio-X não de nossos órgãos, mas sim da alma humana, veríamos então no papel radiográfico milhares de histórias. E as imigrações, sem dúvida, são um apanhado de narrativas que dão cor e vida ao mosaico da sociedade brasileira.
A minha, mesmo que tão distante desses que imigraram ao Brasil no século retrasado, se cruzou com uma descendente da imigração polonesa. Foi quando conheci minha querida amiga Laís, lá do outro lado do oceano, na Polônia moderna do século XXI. Aterrissei nesse país por opção própria – a curiosidade por essa região falava mais alto do que a lista de outros países mais tradicionais. Por outro lado, alguns anos antes, Laís aterrissou lá para resgatar uma parte da história de sua família que tinha raízes ali.
Quando cheguei no país, sem entender uma palavra do que falavam, senti uma grande perplexidade de simplesmente estar ali, deliberadamente saindo do colo familiar para um país tão diferente e estranho ao meu. O choque cultural que paralisa, os costumes que nos direcionam a achar tudo errado, a velha pergunta do por que mesmo eu fiz isso.
E hoje, tendo essas lembranças, em alguns momentos me pego pensando nos imigrantes de tantos anos atrás. Como será que se sentiram naquela época, quando o deslocamento não era por curiosidade e sim por necessidade? Quando a comunicação era tão difícil, quando a bagagem era pequena e trazia ainda consigo a dor de guerras, de perdas, de países em dificuldade, com um adeus que não prometia reencontros.
Pra entender melhor isso, posso contar um pouco o percurso da família Nowak, que imigrou para o Brasil num período mais tardio, em 1929. A primeira Grande Guerra já havia acabado antes, mas deixou muitas marcas num território que acabara de se tornar um país independente. Segundo os escassos registros, entende-se que a família decidiu tentar uma vida melhor no Brasil, após um inverno rigoroso que acabou com sua fonte de renda familiar: o cultivo de maçãs. Na sua despedida, a família teve que se separar, deixando dois filhos mais velhos na Polônia. A avó de Laís, Każimiera Nowak, com apenas 4 anos de idade, viajou com os pais e irmãos em um navio até chegar ao Rio de Janeiro. De lá, partiram para o Espírito Santo, para uma vila chamada Águia Branca. Cansados do calor intenso e da falta de estrutura nessa vila, conseguiram se mudar, junto com outros imigrantes, para o Paraná, região de clima e ambiente mais parecido com o da Polônia e por lá ficaram durante sua vida.
Laís conta que foi a partir dos seus 15 anos, que começou a ter maior interesse pela trajetoria de sua avó, pela sua nacionalidade e por todos os registros da imigração da família. É geralmente só depois de ganhar uma certa maturidade que essa curiosidade desperta com naturalidade na gente. E assim, Laís passou a perguntar mais coisas para sua avó, sentar-se ao lado dela e ouvir o histórico de sua família. Como ela descreve, Każimiera (ou apenas Każia) era uma senhora sisuda e de traços físicos imponentes.
Pouco depois, quando Laís tinha 18 anos, sua avó faleceu aos 84 anos. Foram poucos anos pra poder entender toda a jornada de sua família mas, apesar de agora ter que lidar com a ausência desse elo com seus antepassados e sua curiosidade por tudo isso, ela não desistiu de continuar tentando conectar os pontos perdidos daquela história e dos familiares que ficaram na Polônia.
Assim, 5 anos depois, Laís, já engenheira, foi aprovada para uma bolsa de mestrado na Polônia, parte de um projeto entre governo brasileiro e polonês. Era a primeira vez que viajaria sozinha, que cruzaria um oceano, que sentiria na pele a dor, o medo e a alegria de sair da terra natal. Ela levava consigo alguns registros familiares e algumas cartas – cartas que chegaram da Polônia e cartas que sua avó enviou mas que nunca chegaram ao destino. Através desses documentos, Laís tinha a esperança de entender as circunstâncias da imigração e resgatar alguns desses laços.
Falando pouco do idioma, com dificuldade de traduzir essas cartas, Laís pediu ajuda na tradução para uma colega, nativa da Rússia, com maior conhecimento do polonês. No entanto, a colega também com dificuldades de entender, decidiu enviar ao tio polonês que residia em Varsóvia. Ele, surpreso e curioso, teve uma atitude que selaria o destino: resolveu ir até o endereço anotado em uma das cartas e, qual foi a sua surpresa, quando depois de perguntar ao paroco da região, encontrou parte da família que tinha ficado.
Era a peça que faltava no quebra-cabeças. Depois de tantos anos, as cartas que nunca chegaram, haviam encontrado seu destino. O encontro de Laís com os familiares aconteceu em novembro de 2014, oitenta e cinco anos desde que sua avó havia partido ao Brasil.
Esse inesperado rencontro revelou que parte da parentela que havia ficado na Polônia não esquecera aqueles que tinham emigrado. Devido a diversos problemas politicos do pós-guerra, a comunicação havia sido interrompida, mas as lembranças daqueles que tinham partido permanecera, junto com os questionamentos: como estariam no Brasil? Será que tinham prosperado no além-mar? Lembrar-se-iam da Polônia? Teriam guardado e transmitido a cultura polonesa, o idioma? Essas e tantas dúvidas que ficaram nos seus pensamentos, puderam finalmente ser respondidas – Laís foi a ponte entre esses dois oceanos, o fio condutor dessa crônica, depois de tanto tempo de espera.
Ela era a prova de que algo de muito especial sobre a Polônia tinha sido preservado. Afinal de contas, ela estava ali, a dez mil quilômetros da sua casa em Curitiba, aprendendo polônes e buscando conhecer suas origens. A partir de então, ela teria a oportunidade de experimentar uma Polônia completamente diferente daquela que sua avó deixara: um país em pleno desenvolvimento e cheio de possibilidades.
Morava na excêntrica e fabril Lódz, mas passou seu primero Natal fora de casa em Varsóvia, com a nova família. Na Páscoa, visitaria as montanhas de Zakopane, aprendendo sobre as tradições dessa celebração. Não perderia a oportunidade de ver os majestosos castelos em Malbork e em Cracóvia. Apaixonada por ciência, passaria ainda por Toruń e pela boemia Breslávia. Pode estar também nas águas dos mares bálticos, pelas cidades de Gdańsk, Gdnia e Sopot. Passou ainda em muitos outros lugares, deixando um pouco de si, absorvendo um pouco daquela Polônia, que ela podia agora vislumbrar com seus próprios olhos e seu espírito jovem, mas que já havia aprendido a amar desde sua infância. Em 2021, com muita alegria e orgulho, pode carregar nas suas mãos sua nova identidade. Foi reconhecida como cidadã polaca, um desejo que mantivera durante muitos anos, desde que começara a entender melhor suas origens.
Ainda hoje, depois de ter desbravado o país, a Polônia continua a ser para Laís um lugar mágico, uma espécie de Nárnia, onde os sonhos acontecem, onde nenhum mal pode alcançá-la. Um lugar de encontros, não apenas do seu com sua família, mas o de tantas outras pessoas com suas histórias. O lugar que nos conectou, eu e ela.
Respondendo a meus questionamentos, acredito que pouco se tem registro de como, de fato, esses imigrantes se sentiram. Talvez nem um raro diário possa transmitir exatamente toda a montanha russa de emoções que se sentia. Każia pouco conheceu do mundo e da Polônia, como eu e Laís tivemos a oportunidade. Ainda assim, acredito que como duas jovens que puderem viver a experiência de morar em um país tão distinto, mesmo que em condições diferentes dos imigrantes, nos faz ter uma noção do que eles passaram. Porque apesar dos muitos anos e gerações que nos separam de suas vidas, um elo muito simples nos liga: a situação de ser humano, de sentir emoções como solidão, a saudade, o medo, o despertencimento. Ser um imigrante, independente se foi em 1871 ou 1929, era provavelmente conviver com essas emoções todos os dias.
São muitas as narrativas da imigração, aquelas por necessidade, que permitiram construir histórias como a minha e da Laís e que hoje nos dão acesso a um mundo com menos distâncias e barreiras. Nosso país é formado por pessoas que aceitaram o medo, a solidão, a incerteza e todas as dificuldades da imigração e construíram a vasta diversidade cultural do nosso país.
Depois de morar fora e conhecer outros descendentes poloneses como minha amiga, voltei ao Brasil querendo saber mais sobre os meus antepassados. Comecei a pensar mais na história dos meus pais e principalmente na história da minha avó que morreu jovem e que eu conheci. Queria saber onde ela nasceu, o que fazia, como era sua personalidade. Busquei conhecer os lugares onde ela havia vivido. Queria saber de que parte do mundo minha família veio. Queria conhecer todos os lugares que tinham algum vínculo com o meu passado.
Assim, comecei a admirar e entender que nossos ancestrais não foram somente uma linha na árvore genealógica, uma coleção de pessoas, mas histórias que fizeram a minha possível. Por isso, acho que vale a pena olhar para os 150 anos de imigração polonesa e preservar as memórias desse momento, desenvolver nossa curiosidade pelo passado e manter esses relatos vivos em nós. Fazer parte da história da imigração é seguir contando suas inúmeras tramas e lembrar aos nossos conterrâneos brasileiros que nosso povo foi formado por muitas histórias, como a de Kazia e sua família.

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